Silêncio na Era do Ruído


Já passaram alguns meses após a leitura deste livro, e se na altura tivesse escrito sobre ele teria revelado quase todo o seu conteúdo. Porque digo isto? Porque praticamente todas as páginas são um convite a absorver as palavras, pensar sobre elas, re-absorver e senti-las. As que não passarem por este processo certamente vos vai deixar com interrogações pertinentes sobre o que é isto do Silêncio e como o podemos vivenciar na era do Ruído. Como nos comportamos e reagimos no habitual ambiente de estimulação, a vários níveis, a que estamos sujeitos nos dias que correm?

Por esta esta altura é fácil deduzir que este silêncio não se resume ao acto de não emitir qualquer som. O silêncio é aqui explorado como forma de desligar do ruído constante das nossas vidas e mente, conseguindo encontrar e estar no momento presente. Embora se possa dizer que é um convite ao mindfulness, o livro torna-se muito mais do que isso porque reúne experiências pessoais, expedições do autor e outras leituras que fazem deste livro uma interpretação única do silêncio. 

No decorrer da leitura obras de outros pensadores vão sendo referidas, de autores que já se debruçaram sobre este tema mesmo quando a Era não seria tão caótica como a de agora. No livro de Sara Maitland - O Livro do Silêncio - existem muitas mais referências literárias, tornando-se assim, diria eu, quase um ensaio, caraterística esta que me foi abrandar a leitura. Contudo foi este o livro que me introduziu à temática e, que apesar de me ter sido oferecido, acertou em cheio em algo que não me era de todo desconhecido. Tendo em conta estas duas referências aconselho primeiro Erling Kagge, como introdução ligeira (e reveladora) ao silêncio, e posteriormente, para quem quizer aprofundar e ser mais radical Sara Maitland.

O ruído aqui não se resume só a barulho - emissão de som caótico - e pode ser entendido como tudo o que nos faz passivos face às histórias da nossa vida. Tornamo-nos esponjas constantes do que nos rodeia sem filtros e seleção; dormentes e entorpecidos com a infinitude de estimulações que nos cerca e que tem incrementos exponenciais diariamente; seduzidos por histórias e conteúdos que não as/os nossas/os; ouvintes de um Ego e Egos alheios; dentro da zona de conforto que mascara a arte da possibilidade; em fuga ao silêncio com medo de ouvir e descobrir uma voz interior que pode desabrochar, etc..

O livro também se apresenta como um convite a questionar o papel das palavras no nosso dia-a-dia. É certo que a comunicação é vital ao ser humano, mas é igualmente certo que a comunicação é feita de variadas formas que não envolve só o uso de palavras pois quantas vezes:
  • as palavras não descrevem o indizível;
  • as palavras criam limitações às nossas experiências; 
  • as palavras distanciam-nos do momento presente; 
  • as palavras, inúmeras vezes, tornam-se insatisfatórias. (p. 106) 

Exemplo de comunicação sem palavras é a arte. Poderemos observar uma pintura e no final tentar descrever uma possível interpretação, porém o primeiro passo passou pela contemplação através do silêncio ao olhar para um quadro, tela, escultura ou outra peça. Se depois conseguimos expressar com palavras e fazer justiça ao que vemos deixa muitas reticências. Contudo, não será ainda assim a nossa contemplação influenciada por ruídos?

Mark Rothko, pintor, recusava-se a explicar as suas pinturas argumentando que se assim fosse teria escrito um artigo. (p. 125) E não seria excentricidade esta postura mas sim um movimento na história da pintura caraterizado pela abstração geométrica. Seriam deste modo obras com cores silenciosas e superfícies cromáticas claras e planas, não dando hipótese de deduzir sobre o processo de criação do artista ou mesmo o seu estado de espírito. Artistas como Rothko, com este post-painterly abstraction, renunciaram ao seu traço pessoal para evidenciar o efeito da pintura pura em vez de algo objetivo. Uma forma de quebrar o vínculo "artista-obra-observador"*, deixando o artista de fora e abrindo espaço para contemplação e interpretação silenciosamente pessoal, sem ruído e vínculos, em vez de deduções eventualmente efémeras.

[A título de curiosidade poderão querer ver como 👉 esta fotografia abstrata 👈 se aproximou do estilo das pinturas de M. Rothko, tornando-se ela um quadro de exibição na parede de alguém do outro lado do oceano.] 

Muito mais haveria a destacar neste livro e a desdobrar, se bem que a vossa leitura do mesmo, se for o caso, será muito pessoal tal como foi a minha. Portanto, nem me alongo mais pois estaria a estragar o potencial que este livro abarca e a sua invocação a experiências do silêncio. Prolongar esta sugestão de leitura seria associar-me ao ruído entrando em contradição com o que escrevi até agora.


Intemporal, concentrado mas potente na sua mensagem, estruturado para se ler aos poucos e ideal para pessoas ocupadas bem como um bom livro de cabeceira: é para voltar a ler. Não me ocorre a última vez que manuseei um livro de capa dura, de modo que este pormenor bem como a cor do papel/folhas, o tipo de letra impressa, e claro um bom marcador de livro a acompanhar criaram uma excelente atmosfera sensorial que a leitura digital não pode oferecer. A capa minimalista, de acordo com o tema e título da obra, e com impressão em tom cobre foi a cereja no topo do bolo, ou diria eu a tão esperada chegada ao cume da montanha 😊.

* História da Pintura - Do Renascimento aos Nossos Dias, 1995, Könemann, p. 109

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