A Dança das Mulheres Sábias


"Um tributo ao sagrado feminino que narra de forma cativante a importância das mulheres na vida de cada mulher. Reconhecendo assim a sabedoria, poder e força dos nossos antepassados (anciãs) sejam eles como forem. Um livro pequeno mas com uma mensagem extremamente importante e necessária para a jornada de uma mulher.
                                                                                                                                                                                                                                    Ana Matos

Clarissa Pinkola Estés, autora de Mulheres que Correm com os Lobos (MqCcoL), cria com este livro uma chamada de atenção ao descrever a importância das mulheres na jornada de cada mulher. Valoriza todas, sem exceção, e a relevância de cada uma no ciclo de vida das outras à sua volta. Enaltece o valor das anciãs sejam elas de que cultura, ou estrato social, mostrando o poder e papel que estas "velhas" efetivamente possuem. Uma anciã não se resume à condição de pessoa velha que vive muitos anos mas mais no que se tornou, ao longo desses mesmos anos, com as suas vivências. Clarissa diz-nos que as anciãs não têm que ser necessariamente da nossa família, podem ser outras mulheres que conheçamos mais ou menos bem, e eu valido isso.

Tenho MqCcoL em ebook mas fiquei pelas primeiras páginas, pois na verdade neste formato os livros acabam por cair em esquecimento. Devo dizer que considero a leitura e tradução desafiantes, quer em MqCcoL quer neste que apresento. A escrita desta autora é muito própria havendo necessidade de ler e re-ler frases e parágrafos inteiros para poder entender. Trata-se de uma narrativa muito poética, descritiva e rica em vivências, bem como um imaginário fantástico e surpreendente.

Recomendo esta leitura a todas as mulheres que se queiram reconhecer como MULHERES e que a sugiram a amigas e familiares. 

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Quando finalizei este livro, ainda o segurando por instantes, lembrei-me da minha avó materna e peguei numa folha de papel começando a escrever sobre o que me lembro dela.

Não posso falar por todos, apenas pelos mais próximos, mas em geral existe um sentimento de respeito e reconhecimento pelo esforço que ela fez para criar os filhos num ambiente pobre, hóstil e caraterístico da época.

Foi como muitas mulheres, da altura, privada de frequentar a escola (nem que fosse só um ano), obdiente e fêmea parideira com o fardo de muitos filhos para criar e ensinar. E, para desajudar, era "calcada" por um marido soberbo e maldoso que a aterrorizou mesmo quando o seu juízo era diminuto. Aliás toda a expressão da sua demência revelava os traumas e medos imprimidos na sua estrutura celular como mulher de família ao longo de toda uma vida. Na sua demência vivia num mundo em que tinha que ir fazer isto ou aquilo antes que "ele" chegasse ou visse, porque "ele" depois isto e aquilo...

Maria, o nome dela, e comum a tantas outras, tornou-se uma mulher de semblante duro, endurecido pelo peso da vida e responsabilidades que carregava. Temos uma a duas fotografias em que a Maria mostra o seu sorriso, um pedaço dela que não era conhecido e que acaba por ser o bem mais precioso que nos podia deixar. A fotografia que mais expressa isso é em si um pedaço de esperança e lembrança de que afinal aquela mulher pode ter tido pequenos rasgos de alegria. 

Ainda fiz parte da vida da minha avó até aos meus 13~14 anos, e nos últimos anos cuidava deles e vigiava-os no final do dia. Vejam só a responsabilidade que já me era atribuída e da qual me orgulho agora! Ainda consegui fazer algo por ela, por eles, (honrá-los) não descurar deles como meus ancentrais mesmo que bem afastados no tempo e da (r)evolução do meu mundo de jovem.

Lembro-me dos biscoitos que ela me dava quando eu ía lá a casa. Biscoitos esses que lhe tinham sido oferecidos e que ela guardava numa caixa de metal redonda e azul - guardava-os para os netos. Lembro-me perfeitamente do quarto onde ela tinha essa caixa e do movimento que fazia até essa divisão da casa para a ir buscar.

Lembro-me das gemadas de ovo que fazia para mim. Penso que era algo que o meu tio mais novo, o mais saído da casca, também tomava ou gostava mas já não estou bem certa. Certo é ser incapaz de as ingerir agora ou sequer cheirar a dita mistela.

Recordo igualmente os episódios em que eu comia as batatas cozidas com pele que a minha avó cozinhava na panela de ferro, à lareira, para as galinhas. Eu comi dessas batatas e na verdade sabiam-me muito bem.

Mais normal era a canja de galinha (ou uma outra sopa) que ela fazia com massa que eu adorava, dessa iguaria tenho presente a memória olfativa e mais remotamente o paladar.

A minha avó nunca usou calças, era uma mulher de camisa, saia e avental, em que a saia era abaixo do joelho e as pernas cobertas por meias de licra opacas seguras por simples elásticos de costura.

Sendo eu uma mulher bastante friorenta não pude deixar de me interrogar se a Maria teria frio, sempre de saia, e se aquelas meias lhe eram suficientes para a manter aquecida. Talvez não tenha sentido muito frio porque não podia dar-se ao luxo de parar, ou ao luxo de acusar frio porque havia coisas mais importantes que ela. 

Como Maria outras mais existiam. Isto era próprio de um país e de uma cultura, e sociedade, que tratavava, regra geral, as mulheres como coisas sem grande importância mas com utilidade. Até poderia dizer que ainda assim o é, mas não me vou alargar nesta temática/problemática e prefiro deixar como sugestão um video interessante sobre A Mulher na História de Leandro Karnal. O que posso e quero dizer é que contínua a existir muito para despertar, curar e restruturar nas pessoas independentemente do género. Precisamos de cura pois somos seres muito condicionados por exemplos, palavras e ações que continuam a minar o futuro das pessoas em várias áreas das suas vidas. Uns dão conta de tais condicionamentos, atitudes e comportamentos outros acham tudo normal da vida. É urgente criar respeito se queremos que os nossos filhos, e todos nós, sejam respeitados e vivam numa sociedade mais saudável em vez de progressivamente corrosiva. E mais acrescento, as próprias mulheres para serem respeitadas têm que se respeitar umas às outras... Vemos acontecer isso?

Voltando à Maria, as limitações e padrões que esta carregava passaram à geração seguinte mas com outras nuances. Minha mãe inevitavelmente carrega o modelo de mulher que a sua mãe foi. Com ou sem ambiente que o proporcione carrega os traumas e deveres da sua progenitora inconscientemente sem se aperceber de tão enraízado que está. E para a geração seguinte, para mim, passou algo disso mas mascarado, por exemplo, sob uma forma de controlo e o ter que cuidar que me persegue como uma sombra. Ainda à procura de luz nessa sombra apenas posso dizer que faço esforços, diariamente, para que acabe comigo esse padrão na linhagem maternal, que acabe aqui.

Quando se entra no tema do Sagrado Feminino, da qual não sou minimamente conhecedora, ou noutras esferas ligadas a ancestrais é aconselhado honrar os nossos antepassados. Parece uma tarefa interessante para alguns, parece uma tarefa inútil para muitos ou mesmo em vão para outros. Uns foram próximos, outros nem por isso, outros nem sequer conheceram os seus antepassados. Sendo assim, como os podemos honrar se mal os conhecemos, ou de todo, ou não nos identificamos com eles? 

O primeiro passo é mesmo reconhecer, com presença de espírito, que eles existiram e que fazem parte da nossa árvore genealógica, a seguir saber seus nomes, algo sobre eles e eventuais histórias, isto para quem não os conheceu ou teve pouco contato. Ter pelo menos curiosidade e não os ignorar só porque podemos continuar nas nossas vidas ocupadíssimas já é, por si só, significativo. Para quem os conheceu um pouquinho, a muito, estou certa que arranjará variadas formas de os honrar seja em pensamentos ou por ações. O que vim a considerar importante é não ver os antepassados como, e apenas, pessoas já depositadas de baixo de terra, ou simples fantasmas porque aparentemente não contribuiram para nenhum legado consciente e palpável para além de filhos. 

Meus avós, maternos e paternos, não escreveram nenhum livro, não têm o seu nome em nenhuma rua ou avenida, não tocavam instrumentos musicais, não nos deixaram nenhum ofício. Não obstante, criaram uma teia e uma família da qual faço parte e isso não posso ignorar. Se não nos identificamos com a nossa linhagem isso já é outro assunto. Não havia património imaterial a relatar sobre eles, aliás nunca achei que poderia ter tanto que falar sobre os mesmos, neste caso e em especial sobre a minha avó. Mais eis que o poder da leitura me inspirou a escrever espontaneamente aproveitando para deixar um tributo a ela, a anciã que ainda hoje está no coração da família e deixa saudades às mulheres que gerou.

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Porque toda a mulher é sábia*, e inspiradora, devo reconhecer que foi o blog Já dizia a minha avó que seguia da autora Ana Beatriz Cruz que me inspirou a escrever tão abertamente sobre a minha avó. Obrigada Beatriz, se algum dia apareceres por aqui!

* Clarissa Pinkola Estés

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